sexta-feira, 25 de março de 2011

Tempestade, depois da morte

Notícia de última hora : Leonardo Albuquerque faleceu esta manhã em consequência de uma mina no Vietname…

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Quando dá por si, vê à sua frente algo que se parece com um cais… tinha duas barcas, uma pequena e pouco elaborada, ao contrário da outra que era forte, colorida, cheia de luzes e sinais a dizer: “ Ponha aqui o seu pé ” ou até “ Viaje na nossa companhia até às termas escaldantes de Lúcifer “.
Leonardo acaba por se dirigir cautelosamente à barca mais elaborada. No final da rampa vê o que se assemelha a uma pessoa vestida de vermelho, com dois chifres na cabeça e algo nas mãos que parece ser um tridente. De repente, sente um certo arrepio na espinha e ouve uma voz maléfica:
- Ora ora… seja bem aparecido. O que o traz por cá?!
- Desculpe… eu conheço-o?
- Não…. Apenas vai passar a próxima eternidade comigo…
- Eu não entro aí nem morto!
- Meu caro amigo, já estás morto e enterrado!

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Leonardo dirige-se logo à outra barca e ao longe depara com uma figura angelical que lhe diz:
- Entre, meu caro irmão, já se faz tarde.

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Após ter desembarcado percorre uma longa distância até que ouve uma grande algazarra. Percebe que essa confusão está relacionada com Camões e as suas amadas.
Aproximando-se avista Bárbara, barafustando com Camões:
- Sempre disseste que eu era o amor da tua vida…
- E os poemas que me escrevias? Não servem de nada? E aqueles que me sussurravas aos ouvidos? – questionava-se Leonor.
- Vais dizer-me que os nossos passeios ao pôr-do-sol foram esquecidos?! E as lágrimas que chorei quando não sabia se estavas vivo ou não, após aquela onda nos ter separado? … - interrogava-se Dinamene.
- Vamos acalmar-nos! Estamos todos muito exaltados. Eu amo-vos a todas, mas de maneira diferente. Tu, Dinamene, és culta e decidida, mas, por outro lado, tu, Bárbara, foste a cativa que reavivou a chama em mim, com a tua sinceridade e beleza, ainda que pouco reconhecida… Leonor, Leonor a tua gentileza e simpatia deixam-me derretido…
- Bem… mas isto não pode ficar assim. Tu, Camões, tens de escolher! – decidiu Dinamene.
- Concordo, não podes amar três ao mesmo tempo! – afirmou Bárbara.
- O teu coração dir-te-á quem amas mais…. – disse delicadamente Leonor.
Entretanto Leonardo intervém:
- Espero não estar a incomodar, mas, se não se importam, eu adoraria falar um pouco com Luís de Camões. Será possível?
- Claro, claro!! – respondeu sem pensar Camões.
- Bem, para começar, onde e quando é que nasceu, já que isso é um mistério para todos? – perguntou Leonardo.
- Eu não gosto de revelar coisas do meu passado, pois tive uma vida injusta, mas das conversas que me lembro de ter com a minha mãe, acho que foi por volta do ano de 1524 ou 1525 e acho que foi em Lisboa. – respondeu Camões após muito ter pensado.
- É verdade que teve uma vida muito injusta, mas o que é que sente quando vê aqueles que sempre foram maus e nunca foram castigados em vida, serem agora levados para o inferno? – perguntou Leonardo.
- Bem, é uma sensação agridoce, pois, por um lado, sei que eles merecem e até fico grato por finalmente alguém os castigar. Por outro lado, sinto pena por saber que eles irão passar toda a eternidade a ser castigados. Isso também mexe um pouco com o meu lado emocional…
- E aquela rixa com um dos criados da corte? Acha que foi planeada por quem o odiava? – perguntava divertidamente Leonardo.
- Na verdade, ele estava a pedi-las! Alguns dias antes tinha-me provocado, mas eu contive-me. Aquilo que ele me disse, naquele dia, foi a gota de água! – esclareceu Camões.
- Mas… o que é que ele lhe disse ao certo? – questionou perplexo Leonardo.
- Bem, eu não quero ser rude, mas isso já são coisas pessoais… - disse Camões.
- Bem, mudando de assunto… se me permite, aquele poema “ Sois üa dama “ era para quem?
- Que poema? Eu nunca li esse poema! – questionava-se Leonor.
- Eu também não!!! – exclamaram Dinamene e Bárbara ao mesmo tempo.
- Diz-nos imediatamente quem é a outra!! Responde! - gritava Dinamene.
- Eu…. Que outra?!.... não existe outra…. Dinamene, eu amo-te! És a minha vida.
- Ah! Afinal escolheste-a. E aquele poema “ Descalça vai para a fonte “ ? Escreveste só por escrever? Foi? Eu devia era ter-te afogado enquanto era tempo! – gritava Leonor exaltada.
- Luís Vaz de Camões!!! Responde-me! Quem era a outra?!
- Já te disse que não existe outra. Aquele poema só insultava uma rapariga…. Mais nada!
- Sim, mas, se o lermos direito, é uma coisa. E, se o lermos de outra forma, já conta um “ história diferente ”… - comentou Leonardo sem se aperceber do mal que tinha feito.
- Sabes que mais? Nem vou perder mais tempo contigo. És um traidor! – disse Dinamene, virando-lhe as costas e afastando-se.
De seguida, também Bárbara e Leonor fizeram o mesmo…

Deixando a confusão, Leonardo reflectiu para si próprio:
- Realmente Camões teve uma vida difícil. Tenho a certeza que quando estava na prisão sozinho pensava:
“ Pelo menos quando morrer vou ter paz! “
Mas acho que nem isso lhe aconteceu.